segunda-feira, janeiro 15, 2007

ENTREVISTA #3

José Salvador Faro é graduado em História pela USP, mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e doutor em Jornalismo pela ECA/USP. Atualmente, é docente do programa de pós-graduação em Comunicação da UMESP e professor dos cursos de graduação em Jornalismo na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e também na Metodista. Além disso, é consultor do INEP, da CAPES e da FAPESP.Devido a sua formação e contato direto com as mudanças que o ensino brasileiro vem sofrendo, resolvi entrevistar o professor J. S. Faro para tirar algumas dúvidas sobre a temida e esperada reforma universitária.

* por Paula Cabral Gomes *

Zine Qua Non: O que levou à decadência crítica do ensino superior do Brasil?
J.S. Faro: Primeiro, penso que há uma causa estrutural: nossas elites abandonaram o projeto de uma Universidade voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. No quadro geral de perda de soberania do Estado brasileiro, uma das principais conseqüências foi o descaso pelo ensino e pela pesquisa produzidos pela Universidade pública. Segundo, há uma causa de natureza conjuntural: nosso processo de modernização econômica dependente e reflexa produziu uma universidade privada de resultados, voltada para o imediatismo do mercado, para o adestramento exigido pelo mercado. A convergência dessas duas causas produziu uma universidade alienada de seus compromissos com a sociedade brasileira, ainda que restem alguns centros de excelência onde é possível identificar vigor intelectual, mas isso se transformou num quisto, um pequeno enclave no quadro geral de mediocridade que impera no setor.

ZQN: Quais as piores conseqüências de um ensino mercantilizado?
JSF: As piores conseqüências podem ser resumidas na formação de gerações inteiras de universitários desprovidas de senso reflexivo e experimental. Nós estamos construindo um imenso vazio intelectual, ainda que "todos" possam se orgulhar de possuir algum "diploma" universitário. A titulação graduada no Brasil é instrumento de arrivismo social e não de desenvolvimento efetivo de competências.

ZQN: Qual a grande importância de vincular o ensino e a pesquisa? O que isso traz de bom para um país que deseja projetar seu futuro com consistência e seriedade?
JSF: As funções da Universidade são basicamente duas: reflexão e experimentação. O ensino e a pesquisa são indissociáveis dessas duas funções. Ora, sem isso não se olha o futuro, não há desafios em nenhuma das áreas do conhecimento. Um país com as características do Brasil precisaria zelar por esse capital que pode ser construído pela Universidade porque ela dá sustentabilidade ao desenvolvimento.

ZQN: Os jovens também têm culpa no processo de destruição do ensino superior de qualidade por buscarem apenas um diploma e não formar uma carreira com base no conhecimento?
JSF: Penso que não têm culpa alguma. Crescem e são educados com essa perspectiva arrivista do ensino superior. Não há padrão moderno na sociedade brasileira que não tenha esse substrato ideológico como forma de propaganda.

ZQN: O governo incentiva o ensino mercantil sendo que este não cobra impostos ou os reduz das universidades que dão bolsa para alguns alunos?
JSF: O governo não incentiva o ensino mercantil, pelo menos não este governo da forma como o anterior fazia. O problema é que o ensino privado transformou-se no Brasil num poderoso complexo econômico que atua com extraordinária desenvoltura no centro do poder. São lobbies que desarticulam o papel regulador do Estado e investem no poder de pressão parlamentar, midiático e cultural que acabaram formando nas últimas décadas. Quando o Estado pensa em ampliar as possibilidades de acesso dos jovens à universidade, a única (ou quase única) alternativa que tem é a renúncia fiscal como moeda de troca. O ProUni é exemplo disso: um programa que estimula mais ainda o setor privado e reduz ainda mais a responsabilidade do Estado com a educação superior. De qualquer forma, é preciso fazer uma ressalva importante. Não é todo o ensino privado que age dessa forma. Há instituições de caráter comunitário ou confessional que são comprometidas com uma universidade de qualidade, como é o caso da Metodista, mas eu temo que elas acabem perdendo essas características em função da concorrência predatória que se estabeleceu nessa área. A PUC-SP é um bom exemplo de uma instituição que tem sido obrigada a mudar seu projeto em função dessa contingência.

ZQN: Disciplinando o ensino superior privado, ou seja, verificar a qualidade do ensino, a pesquisa científica e as condições de trabalho de seus professores, a reforma universitária que atinge o país e, principalmente, a população jovem sentiria um impacto menor ou o estrago manteria suas proporções?
JSF: Certamente. Mas, como eu disse na questão anterior, esse poder regulador é limitado pelo poder do segmento do setor privado. Acompanhe o que vai acontecer com o projeto da reforma universitária no Congresso e você terá uma idéia do poder desarticulador e desorganizador dos interesses privados.

ZQN: Qual é a verdadeira reforma universitária que deverá ser feita?
JSF: O ponto de partida é resgatar o papel do Estado como ente normativo do ensino superior. Além disso, é preciso rediscutir o conceito de autonomia universitária, recuperá-lo como uma prática de natureza acadêmica e não administrativa e financeira, como querem as empresas de educação superior. O ante-projeto de reforma, inicialmente formulado pelo então ministro Tarso Genro, previa isso, mas bastou que ele fosse divulgado para que uma campanha de desmontagem do texto que seria enviado ao Congresso tivesse início de uma forma inédita no país inteiro. A versão atual já mostra concessões feitas pelo MEC que desfiguram a proposta inicial. A verdadeira reforma universitária, portanto, tem que procurar recuperar essas idéias originais.

ZQN: Como fazer com que as faculdades privadas e a população entendam que a Universidade, qualquer que seja seu perfil administrativo ou seu regime jurídico, é pública pela natureza de suas atividades e é o Estado que deve zelar para que isso seja obedecido rigorosamente?
JSF: Pergunta difícil. Talvez intensificando o rigor das avaliações e o rigor nas punições para aquelas empresas que não cumprem com seu compromisso social. É preciso expor à opinião pública a verdade sobre o ensino superior privado, separar, mesmo nesse segmento, o joio do trigo.

ZQN: Quais são os riscos do Programa Universidade Para Todos (ProUni)?
JSF: Os riscos são de natureza estrutural porque, como eu disse, o ProUni, reforça um determinado modelo de Universidade. Eu não tenho dúvidas dos benefícios que ele traz a curto prazo para os estudantes carentes, o que eu temo são os efeitos a longo prazo que um programa dessa natureza pode trazer para a instituição universitária.

ZQN: O que o senhor acha das cotas que algumas universidades estão adotando?
JSF: Ainda não tenho uma opinião plenamente formada sobre isso, mas até agora, de tudo quanto leio na imprensa sobre o assunto, a proposta mais inteligente me parece ser a da USP porque parece ser a que mais preserva a questão do mérito. Mas essa ainda é uma opinião muito incipiente. Você terá que me entrevistar outra vez até que eu forme algum tipo de convicção sobre o que vem sendo proposto.

ZQN: A estatização das instituições privadas seria uma boa solução?
JSF: Acho que não. Deve existir espaço para as instituições privadas de qualidade, da mesma forma como penso que não deve existir espaço para instituições públicas sem qualidade.

ZQN: Como anda a luta do Sindicato dos Professores de São Paulo com relação à reforma universitária?
JSF: O Sindicato estudou com muito cuidado todas as características do ante-projeto do governo e das sucessivas modificações que ele sofreu. A preocupação esteve naturalmente voltada para os mecanismos de controle que impeçam que a atividade profissional do professor continue sofrendo os efeitos dos interesses mercantis na educação: baixos salários, inexistência de condições de trabalho, número excessivo de alunos em sala de aula, a preponderância dos mecanismos de natureza administrativa sobre aqueles de perfil didático-pedagógico e científico. Como o sindicato representa os professores das instituições particulares, foi sob essa perspectiva que avaliamos a proposta do governo. Enviamos ao MEC um conjunto de sugestões que visavam aperfeiçoar o projeto e agora estamos acompanhando sua tramitação no Congresso. Pretendemos participar das audiências públicas que serão realizadas e também pressionar parlamentares não comprometidos com o lobby das empresas de educação para que não aprovem emendas que descaracterizem ainda mais a essência do projeto.

ZQN: Uma das faculdades que mais sente a decadência do ensino superior e a mercantilização do ensino é a PUC, que neste ano despediu centenas de professores e funcionários com a desculpa de que dívidas seriam quitadas com esta ação. Qual será o provável futuro desta instituição?
JSF: A PUC não está mercantilizando seu ensino, segundo entendo. Ela vive ainda sob o peso da herança que construiu, isto é, uma universidade com elevado nível de produção científica e com um projeto pedagógico de natureza reflexiva de forte densidade. Não é simples mudar isso de uma hora para outra, até porque há uma legitimação pública dessas características que é responsável pelo perfil de muitos estudantes que procuram nossos cursos. A dúvida é saber até quando essas características serão capazes de resistir à implantação de um modelo gerencial que vai na contra-mão desse projeto universitário. Como é possível manter essas tradições da PUC com um corpo docente instável e mal remunerado? Ou com baixos investimentos em estruturas laboratoriais, por exemplo? Meu receio é o de que essa concepção contábil da universidade católica acabe se sobrepondo aos valores acadêmicos, fato que já é percebido em algumas áreas. Dou o exemplo da reforma curricular do curso de jornalismo que tem sido obstaculizada por objeções de natureza financeira, quando é notório que a estrutura do curso não acompanha mais as demandas da profissão. Se isso ocorrer, temo que a PUC se torne uma instituição descaracterizada em relação às suas origens.

ZQN: Esse espaço é do senhor. Pode deixar o seu recado se quiser.
JSF: Vou repetir aqui o que disse numa assembléia realizada pelos alunos no início do ano, quando eram fortes os protestos contra a demissão de professores: a universidade não pode ser tomada por um sentimento de resignação, como se essas mudanças fossem inevitáveis e naturalizadas, isto é, elas são o único caminho. Se esse sentimento prevalecer o futuro desta universidade da própria universidade brasileira é o pior possível.

Nenhum comentário: